Comer manteiga?

Entenda melhor esse assunto!

As ciências biológicas são naturalmente ciências de verdades relativas, mas nenhuma outra projeta em períodos tão curtos novas evidências com repercussão no dia a dia da população como a ciência da Nutrição. Em meados do mês de junho de 2014, foi publicado na revista americana TIME uma polêmica reportagem sobre consumo de gorduras e risco de doenças cardiovasculares. “Comam manteiga” dizia a capa da revista. O impacto foi imediato. Mas o que dizer para o paciente que ontem mesmo estava proibido de comer manteiga? Se a população leiga enfrenta a grande guerra entre os “alimentos proibidos e permitidos”, o profissional também sofre com a avalanche de novas informações.

A reportagem foi feita baseada no estudo de Chowdhury R, et al que reuniu aproximadamente 600 mil indivíduos em uma meta-análise com 76 estudos. O artigo concluiu que nem ácidos graxos saturados nem insaturados estão relacionados com aumento do risco ou prevenção de eventos cardiovasculares, respectivamente, com exceção dos ácidos graxos trans que apresentaram correlação positiva com eventos cardiovasculares. Críticas, porém, recaíram sobre a metodologia do estudo e enfraqueceram o poder de evidência do trabalho. Dentre os erros na metodologia está a inclusão de estudos que avaliaram ácidos graxos saturados de pequena representatividade na dieta humana e também nos níveis totais de fosfolipídeos plasmáticos, como o ácidos pentadecanóico (C15:0) e heptadecanóico (C17:0). Enquanto esses AGS representam entre 0,5 a 1% dos ácidos graxos de fosfolipídeos plasmáticos, os AGS palmítico e esteárico representam entre 50 e 60% e 30 a 40% respectivamente das gorduras saturadas dos fosfolipídeos plasmáticos. Ao retirar esses estudos da meta-análise, volta a se encontrar associação positiva entre gorduras saturadas e eventos coronarianos (RR 1,21 (IC, 1,04 a 1,40)). Questiona-se também o modelo pelo qual analisou-se os ácidos graxos. Os AGS, AGM, AGP não são entidades individuais na dieta. Precisam ser analisados de forma conjunta, pois o resultado final depende também por qual nutriente foi substituído. Sabe-se que gorduras saturadas são benéficas quando substituídas por ácidos graxos trans. Também sabe-se que substituir gorduras saturadas por carboidratos não conferirá proteção cardiovascular já que apenas de haver redução de LDL-C, haverá também redução de HDL-C e provável aumento de triglicérides. Já na substituição de gorduras saturadas por AGM existe provável benefício, enquanto que substituir AGS por AGP as evidências são convincentes na proteção cardiovascular. Outra crítica é a ampla variação de risco cardiovascular da população analisada. A ausência de estratificação de risco dos voluntários do estudo pode por si gerar resultados falso-negativo do impacto dos diferentes tipos de ácidos graxos da dieta. O próprio autor reconhece que as informações sobre ingestão de ácidos graxos podem ter apresentado viés. Cerca de 90% dos dados foram obtidos por meio de recordatório alimentar de 24h (RA24h). O RA24h é uma ferramenta de trabalho consagrada pelos nutricionistas que reconhecem suas limitações (subrelato, esquecimento, imprecisão da característica dos alimentos consumidos, entre outros fatores).

Guias alimentares em todo o mundo estão baseados em evidências científicas consistentes e apesar da grande torcida ainda não é dessa vez que os alimentos fonte da família das gorduras saturadas foram absolvidos. As recomendações dietéticas que buscam soluções para o homem moderno viver mais e melhor permanecem recomendando moderação no consumo de ácidos graxos palmítico, mirístico e láurico e incentivo ao consumo de ácidos graxos mono e poli-insaturados cis.

Referências

Chowdhury R, Warnakula S, Kunutsor S, Crowe F, Ward HA, Johnson L, et al. Association of dietary, circulating and supplement fatty acids with coronary risk: a systematic review and meta-analyses. Ann Intern Med. 2014; 160:398-406.

Dawczynski C, Kleber ME, März W, Jahreis G, Lorkowski S. Association of dietary, circulating and supplement fatty acids with coronary risk. Ann Intern Med. 2014 Sep 16;161(6):453-4.

Geleijnse JM, Brouwer IA, Kromhout D. Association of dietary, circulating and supplement fatty acids with coronary risk. Ann Intern Med. 2014 Sep 16;161(6):457-8.

Mensink RP, Zock PL, Kester AD, Katan MB.Effects of dietary fatty acids and carbohydrates on the ratio of serum total to HDL cholesterol and on serum lipids and apolipoproteins: a meta-analysis of 60 controlled trials. Am J Clin Nutr. 2003 May;77(5):1146-55.